O uso do poder discricionário pelo Ministério Público de São Paulo

Ministerio Publico Analises

Este artigo discute a forma como o Ministério Público exerce a sua discricionariedade, a partir de dados cadastrais da instituição.

Ricardo Feliz https://www.linkedin.com/in/ricardo-feliz-okamoto-a20344171/
2021-12-17

Introdução

Os resultados e discussões apresentados neste artigo da minha pesquisa realizada no âmbito do meu Trabalho de Conclusão de Curso. Esta é apenas uma divulgação do meu trabalho. Meu objeto de análise é o Ministério Público Paulista. O que eu busco analisar é o uso do poder discricionário pelos promotores públicos. Eu parto da ideia de que o núcleo duro da independência funcional (uma das garantias constitucionais mais fundamentais à instituição ministerial e seus membros) é a discricionariedade. Compreendo discricionariedade em seu sentido comum, de liberdade de agir. Nesse sentido, parto da ideia de que os promotores públicos possuem uma certa liberdade de agir garantida constitucionalmente. Partindo desta ideia o que eu discuto é como a discricionariedade é utilizada na prática. Em outras palavras, o que eu discuto é o uso do poder discricionário pelos promotores públicos paulistas.

Há uma literatura bem homogênea apontando para uma das formas do uso do poder discricionário pelos promotores. É uma literatura tão variada quanto cientistas políticos, cientistas sociais e juristas, e todos apontam para o fato de que os promotores atuam (e devem atuar!) de forma discricionária para escolher como agir frente a um caso de alguma violação a direitos difusos e coletivos. As formas de atuação possíveis seriam, de um lado, uma atuação extrajudicial, marcada pela realização de muitas diligências e pela conclusão de casos com a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC); do outro, uma atuação mais judicializada, que recorre ao Judiciária como forma de resolver os conflitos de direitos difusos e coletivos, por meio da propositura de Ações Civis Públicas (ACPs). Ao primeiro tipo de promotor, chamamos de promotor de fatos; ao segundo, de promotor de gabinete; ou ainda, ao primeiro tipo, podemos chamar de Ministério Público resolutivo, e ao segundo, de Ministério Público demandista

Esta forma de uso do poder discricionário já está bem documentada tanto pela doutrina, como por estudos empíricos. O que eu desejo discutir é de outra ordem, portanto. Desejo verificar se os promotores exercem sua discricionariedade escolhendo não como os promotores atuam, mas escolhendo no que eles vão atuar. Meu foco, então, não é a forma ou os meios de atuação, mas o seu objeto.

A discussão a respeito da escolha do objeto em que os promotores irão atuar é mais sensível do que a discussão de forma. Enquanto a escolha da forma de atuação é um poder discricionário necessário para o bom desempenho das atribuições constitucionais dadas aos membros do Ministério Público, a escolha do objeto não necessariamente funciona dessa maneira. A questão é que os promotores possuem o dever de agir sempre que for identificada uma hipótese de atuação. Então teoricamente não haveria de se falar em escolha no que atuar; não haveria escolha do objeto de atuação.

É justamente tendo este problema em vista que a minha pesquisa buscou analisar este uso específico do poder discricionário sobre o objeto de atuação. A forma para estudarmos este problema foi uma análise quantitativa dos dados cadastrais do Ministério Público.

Metodologia

A base de dados utilizada para este trabalho foi concedida pelo próprio Ministério Público. É uma base criada a partir dos registros de casos que cada promotor público realiza no sistema do SIS MP Integrado. Cada linha da base é um procedimento diferente, que foi registrado por um promotor público. A junção de vários procedimentos resulta em um caso. Como a base não é organizada em torno do caso, mas é organizada em torno de procedimentos, então mais de um código de procedimento pode se referir a um mesmo caso; e um caso se torna a junção de vários procedimentos. Cada linha, então, é identificada por um código de procedimento. Essa informação está contida na primeira coluna da base. As demais colunas descrever características deste procedimento.

Com estes dados, foi possível extrair informações de como o Ministério Público Paulista reagiu a cada uma das provocações. As provocações estavam sempre representadas na base como uma Notícia de Fato (NF). E as notícias de fato tinham dois perfis distintos: um perfil relacionado ao tema; e outro relacionado ao tipo de parte que provocou.

Quanto ao tema, há 8 temas possíveis de atuação do Ministério Público em casos de direitos difusos e coletivos: Inclusão Social, Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo, Consumidor, Infância e Juventude, Pessoa com Deficiência, Saúde Pública e Proteção ao Idoso.

Quanto ao tipo de parte, consideramos 4 tipos de partes distintos: pessoa física, pessoa jurídica de direito privado, sociedade civil organizada e poder público.

Estes dois perfis das notícias de fato foram comparados com os perfis dos casos que foram arquivados (ou seja, que os promotores não atuaram) e com o perfil dos casos em houve uma ação civil pública ou um termo de ajustamento de conduta (ou seja, que os promotores atuaram). Como são 2 perfis distintos (tema e tipo de parte) para 2 grupos diferentes (nf x casos em que os promotores não atuaram; nf x casos em que os promotores atuaram), temos 4 comparações ao todo. A análise feita para discutir o uso do poder discricionário na escolha do objeto de atuação se pautou nestas 4 comparações. Foi realizado um teste de homogeneidade para cada uma das 4 comparações. As comparações foram elaboradas na forma de hipóteses. São duas hipóteses, analisadas em duas dimensões distintas (tema e tipo de parte): H1: O perfil das notícias de fato é estatisticamente igual ao perfil dos arquivamentos H2: O perfil das notícias de fato é estatisticamente igual ao perfil das ações civis públicas e dos termos de ajustamento de conduta.

A seguir, apresento os resultados desses testes e discuto seus significados.

Resultados

Testamos duas hipóteses, em duas dimensões distintas. A primeira hipótese era aquela que comparava os grupos de notícias de fato com o grupo de arquivamentos (nf x arq) e se perguntava se os grupos eram estatisticamente diferentes entre si. Essa avaliação foi feita para os temas de cada grupo, bem como para o tipo de parte que provocou o Ministério Público. A segunda hipótese era aquela que comparava os grupos de notícias de fato com o grupo de ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta (nf x ac/tac). Novamente, essa segunda hipótese foi testada para duas características diferentes dos casos, os temas e os tipos de partes que provocaram os promotores. O Quadro 1 resume os resultados dos testes de cada hipótese.

Table 1: Resultados dos testes de hipótese
hipotese comparacao categoria pvalor rejeitou
H1 nf x arq temas < 0,001 rejeitou a 99% de confiança
H1 nf x arq partes 0,2781 não rejeitou
H2 nf x ac/tac temas < 0,001 rejeitou a 99% de confiança
H2 nf x ac/tac partes 0,0117 rejeitou a 95% de confiança, mas não a 99%

O que esses resultados indicam é que há uma diferença entre o perfil dos casos que chegam a ele em comparação com o perfil dos casos em que ele atua. O que nos resta discutir é o sentido dessa diferença

Discussões Ao encontrarmos evidências que sustentam que o uso do poder discricionário dos promotores se dá na escolha de agir ou não, percebemos no Ministério Público um potencial filtro aos direitos difusos e coletivos. Encontramos, pois, uma margem de atuação dos promotores que não costuma ser analisada pelo direito. Disso, decorre uma questão importante: qual é a legalidade dessa margem de atuação?

Devemos ser cuidadosos com essa análise. Uma resposta rápida e formalista seria a de que essa margem, por si só, é ilícita e está em violação ao princípio da obrigatoriedade. Essa resposta seria meramente formal, pois consideraria o uso do poder discricionário como uma afronta à lei. Entretanto, o problema não é meramente formal. É possível exercer o poder discricionário sem recair em um problema de legalidade. A questão é de outra ordem. O problema de legalidade no uso do poder discricionário é um problema material, é um problema de motivação. Não faz sentido estudarmos se essa margem de atuação é lícita ou ilícita. No lugar, o que faz sentido é estudar as motivações quando a discricionariedade é exercida. Esse exercício poderia ser ilegal por duas razões: (1) a ausência de motivação, ou (2) a atuação guiada por motivos ilícitos.

Os nossos dados não trazem informação alguma a respeito da motivação. E por isso não podemos concluir nada a respeito da legalidade desse poder discricionário. Muitas questões se abrem, então, para continuarmos essa pesquisa: o MP está motivando seus atos? Quem controla isso? Onde isso está publicizado? Em grande medida, o procedimento de arquivamento pode nos dar essas respostas, pois o arquivamento deve ser devidamente motivado (o que não necessariamente implica dizer que eles sejam devidamente motivados) e devem passar, com remessa obrigatória, pela revisão pelo CNMP (o que não implica que essa revisão esteja desempenhando corretamente a sua função). O ponto importante aqui não é criticar o Ministério Público ou não, mas é apontar para lacunas no conhecimento que impedem o avanço dessa discussão. Essas questões ficam abertas para pesquisas futuras.

O texto completo está para ser aprovado pela banca. Assim que o link oficial for disponibilizado, editaremos esse post.

Reuse

Text and figures are licensed under Creative Commons Attribution CC BY 4.0. The figures that have been reused from other sources don't fall under this license and can be recognized by a note in their caption: "Figure from ...".

Citation

For attribution, please cite this work as

Feliz (2021, Dec. 17). Associação Brasileira de Jurimetria: O uso do poder discricionário pelo Ministério Público de São Paulo. Retrieved from https://lab.abj.org.br/posts/2021-12-17-discricionariedade-do-mp/

BibTeX citation

@misc{feliz2021o,
  author = {Feliz, Ricardo},
  title = {Associação Brasileira de Jurimetria: O uso do poder discricionário pelo Ministério Público de São Paulo},
  url = {https://lab.abj.org.br/posts/2021-12-17-discricionariedade-do-mp/},
  year = {2021}
}