Este artigo busca investigar se existe uma relação entre a taxa de litigiosidade com o desenvolvimento, utilizando uma base de processos que extraídos nos Diários de Justiça e informações de IDH municipal.
O que acontece com o sistema jurídico quando uma região se desenvolve? Faz sentido pensarmos que, quanto mais desenvolvida é uma região, mais conflitos ela terá? Podemos estabelecer duas possíveis narrativas.
Maior desenvolvimento pode ser sinônimo de maior atividade econômica. E a atividade econômica se realiza através de contratos. Desta forma, com mais contratos sendo firmados, maiores serão os conflitos decorrentes da inadimplência e do descumprimento contratual. Incapazes de se ajustarem entre si, as partes irão irremediavelmente recorrer ao judiciário.
A outra narrativa é a de que lugares mais desenvolvidos tendem a ter populações maiores. Com grandes populações mecanismos afetivos de resolução de controvérsias começam a se tornar improváveis de acontecer. Por exemplo, em pequenos municípios onde todos conhecem a todos, um conflito entre duas pessoas poderá ser resolvido pelo afeto, por mecanismos pessoais e consensuais. Conforme o município cresce, esse tipo de resolução de conflito se enfraquece, pois ele depende inteiramente no fato de as duas partes se conhecerem e se sentirem constrangidas de litigar uma contra a outra. Então esta seria outra razão para esperar que em regiões mais desenvolvidas, a taxa de litigância seja maior.
Nossa hipótese é de que quanto maior o desenvolvimento, mais complexa fica a sociedade, mais intensas se tornam as atividades econômicas, o que leva mais contratos a serem celebrados, o que, por sua vez, gera maior litigância. Portanto, a nossa hipótese inicial é a de que existe uma relação positiva entre desenvolvimento e litigiosidade.
Nesse artigo, não buscamos estabelecer uma relação causal. Analisamos tão somente a correlação entre litigiosidade e desenvolvimento. Para avaliar a relação causal entre litigiosidade e desenvolvimento, seria necessário outro desenho de estudo incluindo, por exemplo, a evolução da litigiosidade ao longo do tempo.
Em estudos anteriores, já identificamos uma correlação positiva entre litigiosidade e desenvolvimento. A correlação, no entanto, foi identificada no nível estadual. Aqui, analisamos no nível de comarca.
Para testar nossa hipótese, utilizamos duas bases de dados. A primeira é sobre dados relacionados à justiça e à quantidade de processos em cada comarca brasileira, e a segunda sobre o desenvolvimento no município-sede dessas comarcas.
Do lado do judiciário, levantamos a quantidade de processos em cada comarca. Para isso, utilizamos uma base com todos os processos citados nos Diários de Justiça Eletrônicos em determinado período. Ela foi obtida através da leitura automatizada de diários de justiça eletrônicos (DJE) de todo o Brasil. Coletamos todos os processos citados nos DJEs disponibilizados entre outubro de 2020 e janeiro de 2021. Os números de processo extraídos foram identificados através de uma expressão regular baseada no processo único (Res. 65 do CNJ). Uma vez obtida, a base de processos foi cruzada com a nossa base forosCNJ para obter as comarcas em que os processos foram distribuídos. Originalmente, cada observação dessa base de dados correspondia a um único processo. Mas alteramos a base para contar a quantidade de processos por município.
Do lado do desenvolvimento de cada município-sede, utilizamos a base de dados do PNUD, do censo de 2010. Essa base nos traz a informação da população e do IDH e do índice de Gini de cada município brasileiro.
Uma vez obtidas as duas bases, juntamos suas informações em uma base única, ficando com as informações sobre a quantidade de processos por município (base 1), com as informações a respeito do desenvolvimento, isto é, o valor global do IDH por município, o valor dos três índices do IDH (educação, longevidade e renda) e o índice de Gini.
Este estudo se utiliza de três métricas importantes para medir a relação entre justiça e desenvolvimento: o IDH, o índice de gini e a taxa de litigiosidade.
Sobre o IDH, consideramos esta métrica para medir desenvolvimento e não o PIB, porque o PIB indica apenas o crescimento econômico, mas não consegue indicar a qualidade desse crescimento. É possível que haja crescimento no PIB sem que haja uma melhora nas condições de vida da população atingida. O IDH, por outro lado, ele é composto por três parâmetros: o IDH Educação, IDH Longevidade e IDH Renda. Ao combinar a educação de determinada região, ao lado da saúde e da renda é que conseguimos observar o desenvolvimento social de determinada região.
Além do IDH, essa base de dados nos traz informações a respeito do índice de Gini de cada município para medir o desenvolvimento. O índice de Gini é uma métrica utilizada para mensurar desigualdade. Ele vai de 0 a 1. Quanto maior for o valor dessa taxa, mais desigual é a região em questão.
Por fim, na mensuração da “justiça”, utilizamos a métrica de taxa de litigiosidade. Essa taxa foi calculada pela rzão entre o valor absoluto de litigiosidade em cada município com a população local em 2010, compatível com o levantamento do IDH. A escolha de utilizar taxa de litigiosidade e não a litigiosidade absoluta, se deve ao natural crescimento da quantidade de processos de acordo com a população. Por exemplo, a taxa de litigiosidade de 1000 processos seria quase insignificante se o município for de São Paulo Capital, em que a população é de 20 milhões, mas é um número grande, por exemplo, para Ivolândia (GO), cuja população é de pouco mais de 2000 habitantes. Assim, usamos uma taxa de número de processos a cada 100 habitantes.
Para elaboração dos gráficos utilizamos taxa de litigiosidade. Esse indicador permite um dignóstico sobre o potencial crescimento dos litígios de determinada região. É importante ressaltar que por causa da enorme assimetria entre os municípios quanto à taxa de litigiosidade, fizemos uma transformação logarítmica de base 10 nela, a fim de produzir uma relação entre os dados de forma mais clara. A taxa em log foi utilizada somente para a elaboração dos gráficos. Nas tabelas, mantivemos a taxa original de processo por 100 habitantes.
A tabela 1 mostra os 10 municípios-sede de comarca com as maiores taxas de litigiosidade. A maior taxa de litigiosidade é 2.255 processos por 100 habitantes, da comarca de Aruanã, município do interior do estado de Goiás.
Município | Taxa de litigiosidade |
---|---|
ARUANÃ | 2.255 |
ALTO PARANÁ | 2.214 |
CAMPO NOVO | 2.063 |
BARRACÃO | 1.971 |
ARARANGUÁ | 1.965 |
ROLIM DE MOURA | 1.156 |
CAMPINA DAS MISSÕES | 1.149 |
CONCÓRDIA | 1.138 |
FAXINAL DO SOTURNO | 1.128 |
JOAÇABA | 1.067 |
A tabela 2 mostra os municípios-sede de comarca com maiores taxas de litigiosidade por região. Dentre as regiões do Brasil, foi constatado que entre o Centro-Oeste e o Nordeste temos uma diferença de 33,74% sobre a taxa de litigiosidade dos municípios que se destacam.
Região | Município | Taxa de litigiosidade |
---|---|---|
Centro-Oeste | ARUANÃ | 2.255 |
Sul | ALTO PARANÁ | 2.214 |
Norte | ROLIM DE MOURA | 1.156 |
Sudeste | CAJURU | 1.006 |
Nordeste | CANAPI | 0.761 |
A tabela 3 mostra os melhores índices de desenvolvimento de cada região. Revelando que entre os cinco, o IDH da região Sudeste está entre os maiores do País.
Região | IDHM |
---|---|
Sudeste | 0.862 |
Sul | 0.847 |
Centro-Oeste | 0.824 |
Nordeste | 0.772 |
Norte | 0.746 |
A Figura 1 mostra a litigiosidade por IDH geral. É relevante notar que em análise do crescimento não é linear, sugerindo que a relação entre litigiosidade e desenvolvimento não é tão direta e simples, podendo ser influenciada por outros fatores.
A Figura 2 mostra os pontos das maiores taxas de litigiosidade por região do Brasil. Com exceção do Centro-Oeste, todas as regiões apresentam correlação positiva entre a litigiosidade e o desenvolvimento. Na região nordeste, entretanto, a correlação é próxima de zero.
A Tabela 4 mostra as médias obtidas do indicador de educação por região. As regiões Sul e Sudeste possuem as maiores médias de IDHM Educação dentre todas as regiões do Brasil, sendo, seus valores respectivamente, de 0.63 e de 0.64.
Região | Média IDHM educação |
---|---|
Sudeste | 0.64 |
Sul | 0.63 |
Nordeste | 0.50 |
Centro-Oeste | 0.60 |
Norte | 0.48 |
Ainda com relação ao IDHM educação, a Figura 3 mostra a taxa de litigiosidade pelo indicador de Educação entre as regiões do Brasil. As regiões que se destacam são Sul e Sudeste. Nelas, há um claro crescimento na taxa de litigiosidade, em comparação com as demais regiões. Assim, é possível notar que as altas taxas de educação influenciam a procura do judiciário para a resolução dos litígios.
A Figura 4 mostra a taxa de litigiosidade por Gini (concentração de renda em determinado grupo). Quanto menor o Índice de Gini, menor é a litigiosidade, revelando que a desigualdade de renda está relacionada aos conflitos de cada região.
Após a exposição dos resultados, fica claro que o desenvolvimento está relacionado à taxa de litigiosidade. Em primeira constatação demonstra-se que nas regiões em que o índice de desenvolvimento é maior, a taxa de litigiosidade também é maior. Considerando que o IDH leva em conta fatores como, renda, longevidade e educação, podemos afirmar que fatores sociais repercutem na demanda judiciária e acesso à justiça. Regiões como Sudeste, Sul e Centro-Oeste apresentam os melhores índices de IDH, evidenciando um desequilíbrio entre a realidade judicial e o acesso à justiça.
Ao longo da pesquisa, foi possível observar que quanto mais complexa a sociedade, maior o potencial de reconhecimento do direito de proposição de ações. Portanto, pode-se esperar que, à medida que a sociedade evolui, maior o potencial de litigiosidade. Para evitar que a melhora na qualidade de vida da população venha associada a um crescimento exacerbado da litigiosidade, cabe ao poder judiciário e à sociedade civil construir mais mecanismos de composição extrajudicial para a solução amigável de conflitos.
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Torquato, et al. (2021, June 30). Associação Brasileira de Jurimetria: Litigiosidade e desenvolvimento. Retrieved from https://lab.abj.org.br/posts/2021-01-15-litigiosidade/
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