O direito não pode ser reduzido a um ramo literário de interpretação de textos das normas, desatento às consequências sociais das suas decisões
Juristas não fazem pesquisa empírica e ostentam um desprezo olímpico por dados sobre a realidade. A pesquisa jurídica é eminentemente bibliográfica e a fundamentação das suas propostas é exclusivamente baseada na intuição de seus autores (opiniões próprias) e em argumentos de autoridade (opiniões de terceiros). Os juristas acreditam que as respostas para todas as suas perguntas já foram encontradas por alguém. Basta encontrar o livro e fazer a citação.
Recentemente, em um evento em uma universidade ibérica, ouvi do diretor de uma renomada faculdade que nós, brasileiros, devíamos parar com invencionices e anglicismos, uma vez que todas as respostas relevantes para os problemas do direito civil estavam no digesto do justiniano. Mais importante do que estudar direito em conjunto com a economia, a estatística, a psicologia e a administração judiciária, esse diretor defendia a imperiosa necessidade de voltarmos às raízes e estudar direito romano, que deveria novamente incluir os currículos de graduação como matéria obrigatória.
No momento em que ouvi essa afirmação fiquei especulando a respeito do que justiniano teria a dizer sobre o Uber, o poliamor, a adoção por casais homoafetivos, os contratos eletrônicos ou sobre o efeito dos danos morais na proliferação de 30 milhões causas repetitivas. E mais do que isso, diante da afirmação de que naquela faculdade ninguém se atrevia a tentar produzir nenhum conhecimento novo desde a baixa idade média, fiquei imaginando como esses professores encaram a sua própria função na sociedade e que tipo de argumento eles usam para pedir recursos para financiar a suas pesquisas. Convenhamos que a frase “Preciso de um orçamento extra para reler Justiniano pela enésima vez” tende a não ser muito eficaz na captação de recursos.
Esse ponto me parece relevante para entender o papel da doutrina diante de uma nova lei. Novos problemas sociais exigem novas soluções jurídicas que, nos regimes democráticos, são implementadas através da edição de leis votadas por congressos. A edição de uma lei nova causa frenesi na comunidade jurídica, seja por parte daqueles que avidamente se acotovelaram para participar do processo legislativo, e que depois tentam extrair da sua edição algum tipo de capital reputacional, ou por parte dos outros que, não tendo participado do processo, se esforçam para encontrar falhas e omissões na nova legislação e com isso ferir a reputacao dos que participaram.
Nenhum fenômeno expõe de forma mais crua o esgotamento dos debates jurídicos como as disputas por território reputacional dos juristas, em especial as discussões dogmáticas em torno do impacto de novas regulações. A dogmática tradicional tem muito pouco a acrescentar nas discussões sobre impacto regulatório por uma razão simples. A análise de impacto regulatório consiste no estudo das consequências da aplicação de uma nova regulação sobre a realidade do funcionamento da ordem jurídica, incluindo os tipos de conflito que se manifestam, o comportamento dos juízes, suas decisões e a reação das partes. Esse tipo de análise pressupõe uma compreensão sobre como a ordem funcionava antes, conjugado com o domínio de um ferramental preditivo que permita antecipar aproximadamente como ela irá se comportar após a edição da nova lei.
A dogmática, no entanto, não lida com nenhum dos dois conhecimentos. Apesar de ser cada vez mais frequente ouvir dos doutrinadores declarações de que intencionam ser úteis aos leitores e de lecionarem com vistas à prática do direito, o que vemos nos textos não são informações levantadas com rigor e independência sobre a realidade do que se passa nos tribunais, mas sim a já desgastada arte do halterofilismo bibliográfico seguida por tentativas de encaixar os dispositivos das leis abstratas nas suas ainda mais abstratas classificações taxonomicas. Ao restringir seu estudo às interpretações possíveis sobre as normas gerais e à análise das posições de outros juristas a este respeito, a doutrina tradicional fica limitada a um plano literário, essencialmente abstrato e subjetivo, e passa ao largo dos fatos sociais e jurídicos que povoam a realidade do direito.
Mas como a doutrina pode de fato ser útil na aplicação de uma nova lei? Acredito que através de três posturas: interpretação construtiva, abertura conceitual e realismo. Primeiro, a boa vontade. A edição de uma nova lei passa pelo excruciante debate democrático das casas legislativas, com a realização de audiências públicas e a intervenção de lobistas profissionais e, claro, dos próprios deputados e senadores. Esse não é um debate técnico, mas sim um processo político que forja a legislação através de pressões simultâneas de grupos com interesses antagônicos. A acomodação desses interesses não raramente impõe a adoção de soluções mistas e incompletas. Seja pelas limitações intrínsecas a qualquer linguagem (que sempre carrega alguma dubiedade) ou pelas deficiências do seu processo de elaboração, a lei inevitavelmente carrega imperfeições que desafiam os aplicadores do direito. Por essa razão a função do jurista, pelo menos do bom jurista, é reparar essas inconsistências.
Quando assisto às palestras de alguns especialistas esperneando a respeito da atecnicidade, incompletude ou contradição de uma lei fico imaginando o estranhamento de uma plateia diante de um cirurgião médico que se pusesse a reclamar do excesso de sangue, dos gritos e da correria de um hospital. Mas isso não é da própria essência da medicina? Sim, é. Assim como ajustar o discurso político dos legisladores ao discurso técnico dos tribunais é (ou ao menos deveria ser) parte essencial da atividade doutrinária em direito. Isso é o que eu chamo aqui de interpretação construtiva. Diante de uma nova lei o papel da doutrina é compreender a intenção do legislador e auxiliar a construção de um sentido jurídico para a nova lei que permita a sua aplicação pelos tribunais. Apenas isso.
A segunda postura esperada de um doutrinador é abertura conceitual. Assim como o diretor de faculdade mencionado a pouco erra ao procurar julgar a qualidade da legislação atual pela sua aptidão em se encaixar nas soluções de justiniano, a doutrina não pode avaliar a qualidade das novas leis pela sua capacidade de se adequar às classificações da dogmática tradicional. Ela precisa ter em mente que o propósito de uma nova lei é, com o perdão da redundância, ser nova, o que pode incluir a subversão de certas classificações tradicionais.
Por fim, a doutrina precisa ser realista. Isso significa admitir que o direito é uma ciência humana, que tem o objetivo de compreender o comportamento das pessoas e conduzi-las a um comportamento socialmente desejado. O direito não pode ser reduzido a um ramo literário de interpretação de textos das normas, desatento às consequências sociais das suas decisões. E para ser realista não adianta declarar no prefácio que a intenção do autor é ser útil ao leitor. Ser realista significa estudar sistematicamente a realidade do direito, explorar as grandes populações de casos, testar correlações e causalidades entre as normas e os resultados sociais, coletar dados, criar indicadores.
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Nunes (2018, March 13). Associação Brasileira de Jurimetria: Quando a doutrina jurídica pode ser útil de verdade?. Retrieved from https://lab.abj.org.br/posts/2018-03-13-quando-a-doutrina-jurdica-pode-ser-til-de-verdade/
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